domingo, novembro 21, 2010

Maldita Capitu

Abro os olhos e lá está ela. Do outro lado do rio. Com sua cesta de piquenique e seu vestido florido. Os cabelos negros bem penteados e presos por uma fita azul, deixando à mostra orelhas tão graciosas quanto orelhas podem ser. O nariz afilado apontando sempre para cima, não importa para onde se vire o rosto. Os lábios, corados apenas pelo sangue que corre silenciosamente dentro deles, sorriem graciosamente para mim. E quero retribuir o sorriso, mas meus olhos insistem em fechar.

Torno a abrir os olhos. Ainda está lá. E enquanto a estou vendo, parece-me que ficará lá para sempre, mas quando as pálpebras pesam e tenho que fechar os malditos olhos, parece que sua presença se esvai, como se nunca houvesse estado ali. E abro os olhos assustado. Mas ainda está ali. Ela, sua fita e seu sorriso. Do outro lado do rio. A me fazer convites com os olhos. E naquela ausência de palavras, de tudo me falam os olhos. E são interessantes, porque não me contam as meiguices que a roupa e o sorriso sugerem. Me contam travessuras. Fazem convites ousados. Brincam comigo de um jeito que as orelhas, graciosas, não podem.

Tenho que atravessar o rio. Não posso. Não há pontes. Não sei nadar. Não sei quão fundo é o rio. Não tenho forças. E esses olhos pesados? Estou cansado? Estou dormindo? Não sei dizer, só existe ela no meu pensamento. Estou doente? Estou ferido? Como posso prestar atenção em mim quando não sei por quanto tempo ela estará lá para que eu possa admirar? E ela, quer minha atenção? As orelhas, tímidas, não gostam da atenção, escondem-se sob algumas mechas de cabelo que se soltam da fita. O sorriso é discreto, quer ser observado, sem dar-me liberdades. Mas os olhos são travessos, e não me querem como observador. Quer que eu atravesse o rio. Quer que eu a tome em meus braços. Dizem ter algo que eu quero. Algo que me tomaram.

O que será? Como descobrir o que me faltam, quando ela é tudo o que existe e tudo o que preciso? Me tomaram algo, perguntam meus olhos aos dela? Brincam comigo, esses olhos. Sabem brincar. Não têm pressa. Não têm medo. Não tem pudores. Ah! Como me dominam esses olhos. E sigo o jogo deles. E tennto desviar a atenção. Descobrir o que me falta, mas eles não deixam. Não querem que acabe assim. Querem me mostrar. mas quando o farão. Malditas pálpebras! Maldita escuridão!

Abro os olhos. Ela ainda está lá. Inteira. Do outro lado do rio. Com seu vestido e sua cesta. E os olhos agora me convidam a, por um milésimo de instante, deixar de fitá-los. É na cesta que guardam. Mas o que guardam? A verdade é que não me importo com o que seja. Apenas quero brincar com esses olhos, mas eles denunciam que tudo está para acabar. E dessa vez, não são frases silenciosas quee me soltam, mas apenas um silencio sereno. Me fitam intensamente e, ao mesmo tempo, serenos. Olham por dentro. Minha alma. Será que é isto? Tomaram minha alma? Não. Ainda consigo senti-la. Toco o peito aliviado e outro milésimo de instante é quanto dura esse alívio, porque não sinto nada no peito, porque já não bate nele meu coração, mas na maldita cestinha que ela carrega com ela todo o tempo. Malditos olhos! Maldita cesta! Maldita ela inteira por me ter completamente escravo!

Não tenho como viver assim. Preciso de meu coração. Olhos assim não podem tê-lo, porque são interessantes, mas cruéis. Sabem que não sei nadar. Sabem que o rio é fundo. Mas sabem que preciso do meu coração. Me levanto. Não estava dormindo, afinal. Me ponho à beira da margem e fito ela outra vez. Não os olhos, orelhas ou lábios. Não o vestido a cesta ou a fita. Olho ela toda e me pergunto como olhos tão pérfidos vão parar em tão graciosa figura. Caminho em direção a ela. Afundo como pedra. Só a vejo agora distorcida. Refratada. E ouço sua risada. A boca, era, afinal, tão imunda quanto os olhos. Se diverte com meu desespero. E quando estou para desistir, estica os braços em direção ao rio e mepuxa de volta à margem. E estamos enfim do mesmo lado do rio. Ela estende a cesta em minha direção. Pego o meu coração e o ponho de volta no peito.

Ela assiste a tudo interessada. Não perde um só movimento meu. Quando termino, está ela ainda a olhar pra mim. E os olhos repetem as travessuras e os convites. Não há como resistir. Vou em direção a ela e a tomo nos braços. E os lábios dela tentam alcançar os meus. Beijamo-nos. Um beijo doce e quente. Sinto o corpo dela. Ele quer se entregar para mim e eu não faço esforço para recusá-lo. E enquanto me distrai com beijos e carícias, arranca meu coração do peito mais uma vez. Interrompe bruscamente tudo. O beijo, as carícias, o contato. Era tudo um jogo para ela. Tinha novamente o que queria. E, com a força de seu eggo, me lança novamente à outra margem.

Abro os olhos e lá está ela. Do outro lado do rio. Com sua cesta de pequenique e seu vestido florido. E começa tudo outra vez. E não sei quantas vezes. E cada vez demora mais para me tirar do leito do rio. E cada vez é mais breve para me interromper. O jogo, outrora prazeroso, torna-se agora pesado e dolorido, porque só ela se diverte. E saber disso a diverte muito mais. Malditos sejam ela e os frutos podres que aquele ventre regurgitar.

E mais uma vez estamos de lados opostos do rio. E já não consigo olhar para ela. E não quero participar do jogo. Mas não posso sair assim, de peito vazio. Vasculho as margens do rio e encontro uma pedra. Há de servir. Coloco-a no peito e vou me afastando do rio, em direção à próxima cidade e, dessa, mudo-me para outra e outra até cairem minhas pernas de exaustão. E caminho praguejando. Amaldiçoando a menina que terá para sempre meu coração. Amaldiçoando o peito que terá para sempre uma pedra.