quinta-feira, dezembro 10, 2009

A Estrada

Caminhava. Não sabia bem o porquê ou ainda para onde. Caminhava apenas. Há algum tempo já que iniciara a jornada. Estava sozinho todo o tempo. Tinha por companhia apenas o som abafado de seus passos e alguns poucos pensamentos breves que, tão logo iniciavam, já calavam-se. E assim seguia. No início, tudo o que conseguia pensar era porque de estar caminhando. Por mais intrigante que lhe fosse esse pensamento, não deixava de seguir, sempre em frente. Por um longo trecho começou a lembrar de sua vida pré-jornada e, mesmo os fatos recentes pareciam meras sombras de memórias, imagens vagas de uma vida distante. E como eram pesadas essas lembranças, desfazia-se de cada nova memória que o alcançava. E assim perdeu rostos familiares, fatos marcantes - quer felizes quer trágicos - e todo o resto que parecia tatuado em sua essência escorreu como gotas d'água na superfície dura, seguindo cada reentrância de seu ser até enfim tocar o solo. E logo não existia mais vida ou memórias, todo ele estava focado na estrada e no trecho que tinha para seguir.
Não havia absolutamente nada no horizonte que sinalizasse um fim nessa jornada, ou que desse alguma dica do destino para o qual seguia. A paisagem às margens da estrada era desconexa, com elementos bizarramente posicionados. Mas era ela toda tão efêmera quanto os pensamentos e, ainda que a estrada parecesse absorver suas memórias, o que de fato fazia, lembrança alguma parecia contaminar essa paisagem. Ele sequer reparava a grande quantidade de objetos que apareciam, moviam-se, sobreposicionavam-se, combinavam-se e desapareciam para aparecer, em seguida, em um ponto qualquer da estrada. Gramados, bosques, praias e salões. A paisagem continha elementos de tantos ambientes que não existe nada com o que compará-la. A beleza dos objetos também variava e o cenário era, ao mesmo tempo, bucólico, cândido, pérfido e aterrorizante. Lúdico é, realmente, o adjetivo que melhor encaixa-se nesse ambiente, que não se sabe tirado de um sonho infantil ou de um pesadelo. Embora ele não percebesse, o cenário não era totalmente alheio à sua existência, porque quanto mais inquietantes seus pensamentos, mais frenética era a dança da paisagem e, como tais pensamentos eram-lhe cada vez mais frequentes à medida que caminhava, o ritmo dos objetos acelerava a cada novo passo.
Começava a arrepender-se de abandonar as memórias. Perguntava-se se todo o sacrifício valeria à pena por uma jornada de destino incerto. E todo esse pensamento freiava-o pouco a pouco. E ele percebia que os passos estavam cada vez mais lentos e curtos. E agora tinha duas escolhas: recuar e tentar recuperar algumas poucas lembranças, ou prosseguir e ignorar de vez toda a existência que tivera um dia. Optara pela segunda. À velocidade que seguia, entretanto, não chegaria nunca ao fim da estrada. Foi, então, abandonando todos os valores incrustados em seu ser. Era doloroso arrancar tantos valores de uma única vez, mas cada um que perdia dava-o impulso para seguir mais rápido. E logo adquirira um frenesi intenso. Passos longos e rápidos. Estava irreconhecível. Já não era mais o mesmo de quando iniciara a jornada, mas achava que todo esforço seria recompensado.
A necessidade de compreender a situação tornava mais pesados os passos, o esforço tornava-se cada vez maior e, logo, abandonara o seu racionalismo, restando apenas algumas poucas emoções. E à medida que avançava, mais incômodas essas emoções se mostravam e, de tanto em tanto tempo, abandonava novo fardo. E assim seguiu por toda a estrada. Andou poucos passos após largar o último fardo até, enfim, desaparecer.

2 comentários:

  1. oi leandro!!!!
    excelente o texto, adorei!!!
    é quase um alerta pra gente que vive nesse mundo tão caleidoscópio, pra gente que anda numa estrada que às vezes exige que deixemos coisas pra trás; o que, na realidade, é muito fácil de fazer, já que é muito mais comodo caminhar sem bagagem, mas é justamente isso que temos que ponderar, afinal, até quando os fins justificam os meios?
    Bjos
    continue escrevendo

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  2. Muito bom.

    Um tanto quanto complexo, mas tem uma mensagem central muito interessante que traduz nossa vivência: a de viver e escolher o que levaremos ou o que deixaremos para trás, o que, frequentemente, é preferido por nós. Deixar para trás para não sermos incomodados ou vivermos em angústia.

    Eu, particularmente, prefiro as minhas memórias. Esquecê-las me faria perder momentos importantes da minha vida.

    Parabéns!

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