quarta-feira, dezembro 02, 2009

Estava entediado. Encontrava-se sentado, frente à televisão, tão absorto com nada que sequer podia dizer se a televisão estava ligada ou não. Nos breves momentos de lucidez, sentia-se frustrado por toda essa letargia e corria-lhe um anseio por levantar-se. Mas eram tão efêmeros esses pensamentos e tão profunda a letargia que tal ânsia logo dissipava-se, e permanecia ele no sofá, frente à televisão, tão absorto com nada que sequer podia dizer se a televisão estava ligada ou não.
Um pensamento, entretanto, despertou-o, tão incisivo que era. Precisava perceber que estava vivo. Que poderia fazer para quebrar a monotonia? Que ferramentas dispunha para isso? A apatia dera lugar à determinação. Algo precisava ser feito para sentir o sangue fervendo-lhe as veias. Essa última idéia pareceu-lhe repleta de sugestões e possibilidades.
Levantou-se. Caminhou até a cozinha e tomou uma faca grande. Analisou-a. Serviria para seus fins. Seguiu para o quarto, posicionando-se frente ao espelho grande. Tirou a camisa. Posicionou a faca alguns dedos abaixo do umbigo, levemente deslocada para a direita, mão com a qual segurava a faca. Pressionou a metálica lâmina contra a pele e correu-a, fazendo um corte diagonal e pouco profundo. Belíssima visão a que teve. Não conseguia sequer piscar, tão belo era o jorro vermelho vivo. Observou, vidrado, o sangue percorrendo a pele. Ignorava completamente a dor, tamanho foi o êxtase que a cascata carmesim proporcionou-lhe até enfim parar de jorrar.
Mas não era suficiente. Precisava de mais. Dessa vez, abandonara o espelho. Posicionou a faca no braço, logo abaixo do ombro e, repetiu o deslizar da faca, dessa vez, produzindo uma linha horizontal de onde irrompiam filetes delicados. Não havia perfume em sua memória que se comparasse ao odor de seu próprio sangue. Aspirava o ar lenta e profundamente. As sensações eram tantas e tão intensas que precisava de mais. Sem soltar a faca - que já apresentava no fio, contrastando com o metal frio, a quente mácula escarlate - Aproximou a mão da ferida e colheu um pouco do próprio sangue, levando-o à boca. O sabor salgado, com certo traço metálico, combinava com todas as outras sensações. Por maiores que fossem seus anseios por prolongar o momento, o sangue insistia em estancar.
O torpor da experiência produzia-lhe tamanha inquietude que parecia-lhe agora impossível parar. Sentou-se na cama. Levantou a perna, aproximando-a do tronco. Dessa vez, o corte produzido foi vertical. Observou o sangue acumular-se lentamente na parte inferior da ferida até, enfim, escorrer. Como a intensidade do êxtase diminuía a cada nova laceração, aumentava cada vez mais a profundidade do corte, numa vã tentativa de satisfazer seus sentidos.
O pai chegou à casa exausto. Seguiu mecanicamente ao banheiro, mas o horripilante cenário interrompeu-o. Tornou ao quarto do filho. A experiência adquirida nos longos anos que dedicara como investigador sugeria tortura, não fosse o prazer intenso que o rosto do filho revelava. A imagem provocou-lhe um pesar intenso. Tomou a faca e, tremendo, aproximou-a do peito, mirando o coração. O golpe foi rápido e preciso. Sequer viu o sangue jorrar até que seus olhos fitassem, opacos e imóveis, o infinito.

2 comentários:

  1. Gostei do texto, Leandro. No início a linguagem rebuscada, típica dessas pessoas que mantêm blogs, me deixou com a sensação de que ia ser um daqueles textos chatos e inompreensíveis às pessoas literariamente prejudicadas como eu. Mas a ideia da automutilação como metáfora tornou o texto interessante, parabéns!

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  2. A intensidade do texto não o obriga a ter um título. A estória fala por si só.

    Bem significativo e carregado de psicologia.

    Gostei do desfecho, em parte, pois acho que o pai não devia ter morrido. Aliás, ele não devia ter aparecido, na minha opinião. O momento era apenas e tão somente do filho, comungando com seu prazer masoquista (e não sei se esta é a melhor classificação para ele).

    Enfim, bom texto.

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