sábado, dezembro 19, 2009

Hino à Boa Vizinhança

O alarme estridente do despertador o fizera levantar. O corpo iniciava todo o ritual matinal mecanicamente. Seguira para o banheiro onde a ducha fria despertava-lhe algumas energias ainda adormecidas. Fora difícil se acostumar com tão gélidas gotas pela manhã, mas não podia mais dispensar tais. Arrumava-se sempre às pressas e, tão logo pronto, rumava para a cozinha, para se deliciar com a insossa refeição empurrada pelo café sem gosto que fazia sempre. Terminava de aprontar-se e saía. Assim era desde que mudara-se para o apartamento pequeno, dois quartos, distante de tudo (único que fora capaz de bancar) . O edifício, ao contrário dos apartamentos que encerrava, era alto e imponente, alguns detalhes esculpidos em concreto davam-lhe certo ar barroco. Possuía dezessete andares. Nosso protagonista morava no décimo segundo.
Estava esperando o elevador como o fazia toda manhã. A luz indicava que movia-se dos andares mais altos. A porta abriu-se e, dentro, estava a vizinha do décimo quarto, que era quase peça da rotina do nosso protagonista, já que encontravam-se quase todas as manhãs no elevador. Ela já disparando o automático, apesar de em tom cordial, "Bom dia", que, em dias normais, seria respondido com um igualmente automático e ligeiramente mais frio "Bom dia", encerrando assim o diálogo entre essas duas presenças. Mas hoje não era um dia normal. Talvez porque comera torradas ao invés de cereal, ou qualquer dessas mudanças ínfimas que, sem que percebamos, modificam toda nossa rotina, a simples frase, ao invés de produzir-lhe a insípida resposta, iniciou na mente ligeiramente perturbada de nosso protagonista, uma sequência de pensamentos daqueles carregados de filosofia barata que estamos acostumados a ter.
Mensagem ao leitor: A seguir irei expor os pensamentos que tanto incomodaram nosso protagonista e, ainda, alguns que passarão pela cabeça da pobre vizinha, porque detesto personagens-paisagem. Se o leitor não suporta filosofia barata e textos mosaicos, que mudam constantemente de perspectiva, intorrompa a leitura. Vá a outros blogs, busque outros textos. Se decidir prosseguir, aproveite a leitura...
"Que diabos ela quer dizer com isso? Quem ela é para desejar-me bom dia, se nem ao menos me conhece? Que verdade pode haver em um mero cumprimento dirigido a um estranho? Nem sequer lembrar-se-á de mim ao longo do dia, para que fingir que lhe interessa que o mesmo me seja bom?" Os pensamentos, soprados por uma existência estranha de sua própria mente, seguiam a perturbar-lhe enquanto o elevador descia. Não que o elevador fosse lento, mas os pensamentos que eram rápidos e, como a cronologia não me servirá muito agora, marcarei os pensamentos de acordo com o andar em que foram concebidos. Esse, por exemplo, fora no décimo primeiro andar.
"Será que não ouviu?" Isso quem pensa agora é ela, já no oitavo andar. "Até senti minha voz falhar um pouco, mas não acho que tenha sido completamente inaudível. Fora sempre tão cordial, porque será que me ignora agora? Aposto que a invejosa do 703 já foi dizer-lhe mentiras a meu respeito. Se bem que ela viajou já há algum tempo. Será que devo repetir o cumprimento? Será que realmente não me escutou?" E todas essas suposições confundiam a pequena mente dessa, procurando sempre desculpas para essa atitude tão fria do vizinho.
Sétimo andar. "Será que se acha tão importante a ponto de crer que uma simples saudação produzirá efeitos positivos no meu dia? Tem sim certo ar burguês, daqueles a quem o ego é maior que as virtudes. Acreditava nas palavras que dizia ou era algo tão automático que sequer tomara ciência?"
Quinto andar. "Olha a forma como ele move os olhos. A fronte carregada como uma nuvem tempestuosa. Está concentrado em algo, mas o quê? Estaria planejando algo? Talvez fosse ilícito. Já o vira com uma ou duas companhias suspeitas e sempre lhe parecera um daqueles personagens de romance policial, que nunca se sabe se é vilão ou mocinho. Ou talvez algo o esteja perturbando. Morte na família, risco no emprego. É isso com certeza! Acha que será demitido e, por isso, não crê que será um bom dia." Acho incrível a capacidade que temos de fantasiar a vida alheia e, quanto mais alheios a nós são as pessoas, mais liberdade nosso pensamento toma para divagar. Digo isso porque os pensamentos da vizinha seguirão por longas hipóteses, que não julguei necessárias escrever.
Quarto andar. "Sequer sabe meu nome ou o que faço durante meu dia assim como eu não tenho idéia das ações da rotina dela? Qual o sentido de fingir nos importarmos?"
Os pensamentos de ambos seguiram caminhos diversos ao longo dos andares seguintes, ele, questionando a saudação e, ela, a ausência desta. Já estavam no térreo quando ela, decidida, repetiu em voz firme e audível: "Bom dia". Ao nosso protagonista duas idéias surgiram para decidir: responder ou ignorar. A primeira o tornaria de novo prisioneiro da rotina que há algum tempo seguia. A segunda seria um marco de sua rebeldia contra o sistema porque sempre começamos questionando as coisas pequenas até, enfim, chegarmos nos assuntos importantes. A decisão fora tomada num instante, de modo que não houve pausa tão dramática quanto a do elevador.
"Bom dia" respondeu ele.
E viveram para sempre na rotina. Se felizes ou não, quem sou eu pra dizer?

Nova mensagem ao leitor: Acredite, estou tão frustrado quanto você. Achei mesmo que estava escrevendo uma daquelas histórias sobre pessoas questionando a estrutura social. Pessoas comuns que, por um pensamento profundo e intenso, tornam-se referência para as gerações que virão. Não percebi quão medíocre era esse que escolhi como protagonista. Mas essa escolha era dele e não minha e detesto esses escritores que, para ter o que escrever, vestem seus personagens de heróis. Preciso de um tempo para entender a atitude dele e devo ficar uns dois a três dias sem escrever. Na próxima talvez escreva sobre a moça do 309. Soube que ela curte Sartre e Heavy Metal...

2 comentários:

  1. Caracas. Ficou MUITO BOM! Muito mesmo! Tô pasma! Não só as aulas te fazem escrever, mas também o ócio lhe foi muito criativo.

    Parabéns!

    ;)

    ;*

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  2. MUITO BOM!!!!!
    É incrível como vc vai deixando sua marca literária nos seus textos e esse com certeza ficou excelente. Assim como os seus personagens, durante a leitura nós ,leitores, iniciamos uma série de suposições e hipóteses de como o texto vai fluir e esse superou todas elas. Achei prazerosamente surpreendente (perdoe-me o eco).
    Bjoss
    p.s.: sinceramente eu não acho que as aulas sejam muito diferentes do ócio, rsrsrsrs.

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